Aborto: a polêmica ilegal
Mulheres de diferentes idades e classes sociais recorrem a ilegalidade para tirar um filho não desejado.
Veja como o aborto era visto há mais de 30 anos atrás e compare com as diferenças de hoje em dia. O tema não deixou de ser polêmico, mas será que houve muita mudança?
Maria Cristina, 27 anos, psicóloga, terceiro aborto. Mais uma vez, com
os medos de sempre, ela vai à clínica situada numa rua tranqüila e
arborizada, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. É um sobrado pintado
de branco, com vidros fumê e plantas. Acompanhada por uma amiga, ela
aguarda numa ampla sala, junto com outras vinte moças, sua vez de ser
atendida. Raras mulheres aparecem ali sozinhas. A grande maioria está
acompanhada por namorados, maridos ou amigas. Como das outras vezes,
Cristina teve que esperar mais de uma hora para ser chamada. Quando isso
ocorre, ela é levada para uma sala onde troca sua roupa por um avental
de papel cor-de-rosa, descartável. Um médico faz o exame ginecológico
para constatar em que mês está a gestação. Depois, ela é conduzida para
outra sala e espera um pouco mais. O médico aparece novamente, pega seu
braço e diz que vai ver se ela tem alergia a soro. É a anestesia. Quinze
minutos mais tarde, Cristina acorda numa outra sala, com uma enfermeira
insistindo para que ela desperte, penteie os cabelos e desapareça o
mais rapidamente possível.
Atividade ilegal, clandestina, não existem dados oficiais sobre o
número de abortos realizados no Brasil. Apesar disso, calcula-se que
anualmente cerca de 3 milhões de mulheres brasileiras submeteram-se a
alguma prática abortiva. A ilegalidade é apontada por médicos como a
principal causa dos altos riscos a que se expõem atualmente as mulheres
que recorrem ao aborto. Negócio escuso, clandestino, portanto não
sujeito à fiscalização, é um campo fértil para a ação de pessoas
inescrupulosas, tornando-se uma prática que pode até conduzir à morte o
que, na realidade, se bem realizado, oferece riscos bastante
controláveis. Além disso, a ameaça de prisão favorece os altos preços e
inclusive chantagens.
No Rio e São Paulo concentra-se o maior número de profissionais que
praticam esta especialidade. Nestas duas cidades existem mais de 100
médicos que fazem este serviço rotineiramente. Mas as estatísticas param
por aí. Como saber que a clínica elegante, situada numa rua tranqüila
do Jardim Botânico, oferece estes serviços? Não há placas nas portas,
não há anúncios em jornais ou nas listas de especialidades médicas. Um
médico do Rio sorri quando se pergunta se é possível quantificar o
número de abortos realizados na cidade: "nossa máfia é muito unida e
combinamos que estes números nós não damos. Causaria complicações com os
colegas que não fazem. Eles ficariam nos chamando de príncipes. Daria
problemas com o imposto de renda". Entretanto, tomando-se por base que
existem na cidade três clínicas de massa e que cada uma delas atenda
diariamente 100 mulheres, além de outras 300 pacientes atendidas em
dezenas de outros consultórios, pode-se arriscar um cálculo de que pelo
menos 18.000 mulheres abortam mensalmente no Rio de Janeiro. Ou seja,
mais de 200.000 por ano. Neste número não estariam incluídas as clientes
que vêm de outros Estados, principalmente das cidades de Brasília,
Goiânia, Belo Horizonte e Vitória. "Nas cidades pequenas", explica o
médico carioca, "os médicos raramente arriscam, porque seriam facilmente
descobertos. Então eles mandam as clientes para nós".
Na maior parte dos casos, as mulheres procuram fazer o aborto até um
mês e meio de gravidez, e descobrem mais ou menos facilmente - seja qual
for a classe social a que pertençam - onde é possível fazê-lo. Para
isso recorrem a amigas, que enfrentaram o problema ou até a médicos,
que, mesmo não se dispondo a ajudar, sempre podem indicar um outro
profissional que o faça.
As mais pobres, sem condições para pagar um médico, tomam ervas,
remédios caseiros, que passam de geração para geração. São muitas as
receitas: ferver por algum tempo uma xícara de café em grão - o chamado
café cru - com um copo de pinga; ou um chá de canela bem forte,
misturado com Cibalena.
Mas quando toda esta alquimia falha, o atraso menstrual permanece e as
dúvidas quanto à gravidez aumentam, a alternativa procurada é a da
farmácia. O grande supermercado farmacêutico é sempre repleto de opções.
Uma rápida explicação do problema e qualquer balconista saberá dizer
pelo menos cinco nomes de drogas que, supostamente, podem provocar
aborto. Apesar as tarja vermelha, que indica a obrigatoriedade de
receita médica, estes remédios são vendidos indiscriminadamente e os
farmacêuticos alardeiam a sua eficácia.
As mulheres de baixo poder aquisitivo, sem dinheiro para pagar um
profissional, encaminham-se para quem oferece preços mais acessíveis,
sujeitando-se ao trabalho de "curiosas". Estas mulheres, sem qualquer
formação, lançam mão de comprimidos, beberagens, sondas e até mesmo
lavagens do útero com água quente e substâncias saponíferas, altamente
cáusticas, que, pretensamente, serviriam como curativos internos. As
sondas provocam dilatação do colo do útero, deslocando o feto e expondo
as mulheres a sérios riscos de ruptura uterina, já que durante a
gravidez as paredes do útero estão mais flácidas e a "curiosa", durante o
trabalho, não encontra resistência, podendo romper estas paredes.
Médico com posição definida contra o aborto, o dr. Attilio Mario
Vianello adverte para os riscos, que são muitos. Um aborto mal feito
pode levar a sérias infecções uterinas, inflamações hemorrágicas que
ameaçam a vida da paciente. Mais a longo prazo, as conseqüências podem
ser infecções crônicas na pélvis, distúrbios menstruais e até
esterilidade. Segundo Vianello, a raspagem excessiva do útero durante a
curetagem pode acarretar uma insuficiência do endométrio, membrana que
reveste o útero internamente. Esta insuficiência gera distúrbios
menstruais e, em casos mais extremos, podem ocorrer as sinequias
uterinas, ou seja: sem endométrio, as paredes do útero, num processo de
cicatrização, acabam por se colarem, provocando a esterilidade na
mulher. Outra conseqüência é que infecções provocadas por abortos mal
feitos atingem as trompas. A cicatrização, no processo de cura, poderá
provocar a obstrução das trompas, o que também resulta em esterilidade.
As infecções nas trompas podem gerar também outro problema: a velocidade
da penetração do óvulo depende da extensão a ser percorrida. Depois de
fertilizado, quando o óvulo faz seu caminho pelas trompas até
implantar-se no útero, caso esta trompa esteja com a permeabilidade
reduzida, poderá ocorrer que o óvulo fecundado (portanto, ovo) se
instale e se desenvolva antes do útero, provocando uma gravidez tubária.
Quem puder pagar, em qualquer capital brasileira, encontrará médicos
dispostos a fazer o serviço. Neste caso, poderá estar sujeita a uma
curetagem, feita por um profissional, ou o processo de aspiração ou
sucção. O processo de aspiração consiste em introduzir uma cânula,
ligada a um aspirador, no colo do útero, e que aspira todo o tecido,
oferecendo um risco mínimo à paciente, se for feito em ambiente
asséptico, e por médico especializado. Trata-se de uma evolução da
curetagem, até hoje o método mais usado no país. Para gravidez acima do
segundo mês, um dos métodos utilizados é o da infusão salina
hipertônica, uma injeção dada dentro do útero através da parede
abdominal e que em 24 horas provoca a expulsão do embrião. Seu risco,
dizem os médicos, é maior e se for dada fora do útero provoca a morte
instantânea da paciente. A injeção provoca o processo e 24 horas, como
se fosse um parto em miniatura. Depois de tomar a injeção, a paciente
fica internada por 12 ou 24 horas. Para gravidez acima do quarto mês, há
a Prostaglandina, que é uma injeção que estimula a atividade uterina no
trabalho de parto. Com sua venda proibida em farmácias, uso
exclusivamente hospitalar e com vigilância de enfermagem, a
Prostaglandina é aplicada em pacientes que precisam ficar internadas
durante todo o tempo, já que a injeção precisa ser repetida. No total, o
processo - que é também um parto em miniatura - varia de 18 a 24 horas e
é um método mais caro que os outros, já que cada injeção custa 700
cruzeiros.
Com um risco muito maior e praticado em menor escala, existem as
microcesárias, para os casos em que a gravidez está muito adiantada. A
grande maioria dos médicos se recusa até mesmo a tocar no assunto, pois
consideram um verdadeiro infanticídio. A microcesária é uma operação
completa, mas muito mais arriscada para a gestante - como a gestação é
tempo menor, a parede de músculos uterinos ainda está bastante espessa, o
que provoca grandes sangramentos.
Legalizar o aborto seria a solução? Este médico afirma que sim. "Isso
evitaria a ocorrência de problemas sociais gravíssimos. No Brasil, se
faz mais abortos que nos Estados Unidos, onde é legalizado. Na maior
parte desses países a medicina é socializada e quem paga é o
seguro-saúde, a previdência social. No Brasil, já se procurou por todos
os meios influir os legisladores, mas nada se conseguiu, apesar do
governo saber de tudo."
O ginecologista Luiz Figueiredo Mathias, 37 anos, pós-graduado em
ginecologia pelo New York Medical College, não pratica aborto, mas não
condena quem o faz. "É um fato consumado. E feito ilegalmente causa mais
problemas do que se fosse realizado por médicos responsáveis. O dia em
que liberarem o aborto, estas clínicas vão tomar cuidado com assepsia,
pois funcionarão legalmente e elas estarão sujeitas a uma fiscalização".
Clandestino, ilegal, praticado por uma população que em grande parte
não tem poder aquisitivo, o aborto feito sem controle pode acarretar
sérias consequências para as mulheres. E uma dessas consequências
certamente é a morte.
Fonte: bebe.com
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